Considerações

29 outubro, 2009
Ali estava ela, dividida ao meio, pensamentos e sentimentos á mil por hora. "Sim? Não? Quem sabe um talvez? Não! 'Talvez' é o fim..." Logo à sua frente, como que provocando, estava a carta. Aquela carta que mudara seu dia, sua semana e que, talvez - se ela dissesse sim -, mudaria sua vida. "Espero sua resposta em 24 horas", dizia o post-scriptum destacado no final da página. "É muito pouco tempo pra uma decisão desse porte", pensou. Suas pernas se debatiam furiosamente num tique de ansiedade.

Na mesma mesa onde repousava o envelope recém aberto, havia um porta-retratos empoeirado, onde ela se via de véu e grinalda ao lado de seu marido. Lembranças vieram à mente daquela mulher vivida, muitas delas acompanhadas de amarguras. Seu casamento já se arrastava há mais de 15 anos e só sobrevivia graças à sua apatia e, talvez, à convenções preconceituosas a respeito de mulheres divorciadas. A vida a dois já não passava de mero compromisso formal: nada de sexo, intimidades, risos e momentos agradáveis. Às vezes ela se perguntava por que ainda dormia ao lado daquele homem estranho.

Mas... mesmo assim. Aceitar seria arriscar demais. Afinal, se ela não tinha amor, pelo menos o conforto financeiro ainda era digno de consideração. Olhou em volta, para o luxo que a rodeava e que, de algum modo, já fazia parte dela. Do fundo de seu coração, considerava impossível sobreviver sem tudo aquilo que compunha seu mundo de dondoca. Apertou o papel, já meio desgastado pelas mãos suadas e, por um milésimo de segundos, conseguiu controlar o ímpeto de amassar, jogar no lixo e acabar com aquela insensatez. Ao invés disso, jogou a cabeça pesadamente sobre escrivaninha, num ato de desespero e dúvida.

À mesma hora do dia seguinte, só havia uma pessoa na linha de partida do trem que ia para Londres. Um tipo bem apessoado, meio grisalho, atlético e elegante. Parecia ter perdido a condução ou então aguardar alguma companhia retardatária. Os olhos tristes e cansados fitavam os dois tickets de embarque na palma da mão com perceptível desapontamento. Duas horas depois, algum sortudo acharia um deles, abandonado cuidadosamente sobre o banco de cimento.

//Ah... É bom estar de volta! Lay novo... O bege me persegue!
Quero agradecer a todas que comentaram no meu último post. Senti saudades dessa amizade, mesmo que tenha sido breve o distanciamento.

Distimia

19 outubro, 2009
"Eu nem sei porque me sinto assim
Vem de repente, um anjo triste perto de mim"

O sol parecia queimar a minha pele de propósito, como se zombasse do meu ridículo dia ruim. Algumas pessoas paradas na calçada conversavam ou olhavam alguma virtrine; alguém me perguntou como chegar à loja x, minha boca respondeu mecânicamente: "vá direto e dobre alí". Estranhamente, tudo parecia estar num mundo paralelo ao meu, as vozes entravam por meus ouvidos e se transformavam em ecos distantes. A maldita bolha me envolveu denovo na sua névoa sombria. Eu me sentia leve e pesada ao mesmo tempo, como se estivesse caminhando em saltos pela crosta lunar.

"Queria ser como os outros
E rir das desgraças da vida
Ou fingir estar sempre bem
Ver a leveza das coisas com humor"

Um vazio intenso e frio era tudo o que existia ali dentro. Lá fora, a vida se movia como num sonho brilhante, inacessivel e contrastante com meu universo preto-e-branco. Quase todos os meus sentimentos deixaram de existir, como numa falência múltipla e os que restaram ocuparam todos os espaços vazios... Medo, culpa, desesperança. Enquanto eu caminhava para casa, pensava no meu futuro e presente, fazendo uma equação louca em busca de respostas. "Futuro? Futuro?" A minha propria existência se projetou na minha mente como uma disforme massa, tão maleável a ponto de escorrer entre os meus dedos. "Quem roubou minha serotonina?" Meus olhos choraram lágrimas secas.

"Só me deixe aqui quieto... Isso passa
amanhã é um outro dia, não é?"
(Via láctea - Legião Urbana)

Frescuras de Mulher

16 outubro, 2009
Dia cheio! Jéssica subiu as escadas do apartamento ainda limpando as lágrimas que insistiam em manchar seu rosto de vermelho. Pegou o molho de chaves na bolsa e logo estava na sala, onde se jogou pesadamente no sofá. Ouviu sons de televisor vindos do quarto e sentiu-se aliviada por não estar só em casa. Até se animou a andar até o outro cômodo onde André, seu marido, assistia a um jogo de futebol. Pareceu não perceber a presença da mulher, que se aproximou, intencionando abraçá-lo.

-Amor...
-Hum?-respondeu ele, secamente, fazendo um gesto incomodado de 'chega pra lá'.
-Sabe, meu dia não foi dos melhores - continuou ela, persistente.
-É mesm... Olha o gol, olha o gol!!

O jovem casal vivia sob o mesmo teto há quase três anos e podia-se dizer que eram felizes. Porém, há três ou quatro meses, Jéssica andava meio triste, cabisbaixa e às vezes dizia sentir-se deprimida. André percebeu a mudança da mulher, mas não deu muita bola, achava que era pura 'frescura de mulher' ou algum teatrinho pra chamar a atenção. Seus amigos sempre lhe diziam que as mulheres eram assim mesmo e que não se preocupasse. Reforçavam a tese contando seus próprios casos domésticos.

-Amor... - Algumas lágrimas voltaram a cair de seus olhos.
-Oi? - sem tirar os olhos da TV.
-Olhe pra mim! - Ela virou a cabeça dele suavemente em direção a seu rosto.
-O que foi?! Será que eu não tenho nem mais o direito de assistir meu futebol em paz? - Fez um gesto brusco, se desvencilhando das mãos dela.
-Eu só queria conversar...
-Você não pode esperar um pouco? - Gritou ele, muito irritado.

Jéssica não respondeu, apenas se levantou em silêncio e lágrimas e saiu do quarto. André se sentiu aliviado por finalmente poder ver seu time jogar. Logo que a partida terminasse, pediria desculpas à esposa manhosa e tudo ficaria bem...

Fim do jogo! A partida tinha sido emocionante, decidida em favor do seu time nos últimos segundo de acréscimo. Satisfeito, ele foi até a cozinha beliscar algo na geladeira e aproveitar pra embromar a mulher. Mas, Jéssica não estava na cozinha... nem na sala! Talvez ela tivesse saído ou ido ao banheiro. Foi conferir por via das dúvidas.

“Amor... Você está aí?". Ouviu sons de chuveiro ligado e abriu a porta, que estava destrancada. Lá estava ela, mas não como ele imaginava. Havia muito sangue no chão do box, formando uma pequena piscina vermelha que envolvia o corpo seminu dobrado no chão. A água fria do chuveiro caía sobre o colo que apoiava o pulso rasgado. Uma navalha enferrujada repousava entre os dedos de Jéssica.

André agiu mecanicamente como se aquela cena fizesse parte de um sonho. Desligou o chuveiro e tocou o pescoço de sua esposa em busca de batimentos. Nada... Ficou paralisado um instante, olhando o rosto pálido e molhado. Ainda havia sons de televisor no apartamento do 3º andar quando alguém pulou da janela.

Vida de Cupido

14 outubro, 2009


"Próximo!"
Gritou o auto-falante. Pedro entrou pela pequena porta em forma de coração, que logo se fechou atrás de si. Sentada atrás de uma pilha de papéis estava uma mulher corpulenta com enormes óculos pendurados no nariz puntudo.
-Más notícias pra você seu fanfarrão!-disse ela, com os olhos no teto.
-Quero novidades, tá?- Respondeu o cupido, com seu cigarro no canto da boca.
-Pra começar, onde está seu uniforme?
-Você chama aquela fralda nojenta de uniforme? Eu não sou bebê!
Ela deu de ombros, passando as mãos sobre a pilha de papéis
-Você tem 3187 advertências... Se eu fosse você cuidaria melhor de seu cargo...
-Dispenso seus conselhos! Vamos ao que interessa. Passa logo a parafernália.
-Estou falando sério, seu bunda-mole! Voce sabe muito bem o que acontece com Anjos desobedientes, não é?
Ele engoliu seco, passando as mãos pelos cachos
-Talvez o Limbo não seja tão mal...
-Não se esqueça de que Ele ouve tudo...
-Deixa de lenga-lenga, mulher! Tem mais 9 000 anjos na fila, sabia?
-Sei... Bem, aqui está seu roteiro - disse, entregando-lhe um pequeno papel cor-de-rosa.
-Onde estão as flechas?
-Aqui... Mas, olha. Vê se não desperdiça. Sua pontaria é uma das piores...
-Eu sou um anjo, não um arqueiro.
Encaminhou-se para um pequeno compartimento vermelho, onde foi fechado por uma porta de vidro. Aproveitou para fazer um gesto obceno enquanto a mulher apertava o botão escrito UTT (última tecnologia em teletransporte).

O papel dizia: "Encontro acidental na Av. Coelho Gordo às 2:00h em ponto". E lá estava ele, pitando seu cigarrinho numa nuvem fofa, com meia hora de adiantamento para cobrir qualquer imprevisto. "Como se o 'excepcional' Destino deixasse escapar alguma coisa", pensou ele, com ironia, mal-humor e resquícios de inveja. Enquanto esperava, pegou uma das flechas que carregava e ficou observado seu brilho cor-de-rosa. "E pensar que até música já fizeram contra nós... Esses humanos folgados que nem são capazes de arranjar um par romântico sozinhos... Onde Ele estava com a cabeça quando inventou tais criaturas?? Se fosse eu..." Teria completado seu devaneio, não fosse um barulho seco de uma trombada. "São eles!"

Parecendo não ter muita prática, posicionou no arco a flecha que já segurava, mirou e "blim!". Acertou em cheio a moça, que logo se apaixonou perdidamente pelo rapaz que catava seus livros pelo asfalto. O Próximo passo, foi fazer o mesmo com o garoto, que deu um pouco mais de trabalho, sendo necessárias três flechas. “Tudo bem... Ao menos só desperdicei duas". Sorriu de contentamento e olhou o relógio para marcar seu novo recorde. Mas, algo estava errado... Ainda eram 1:40h!

"Essa não..." Sentiu uma pontada no coraçãozinho de anjo."Flechei o casal errado? Só pode ser brincadeira...". Começou a chorar e roer unhas. Sabia que errar de casal era um crime gravíssimo, previsto na constituição do céu. Já ouvira muitas histórias de casais que não eram pra se apaixonar e terminaram em tragédia. Romeu e Julieta era um dos casos mais famosos... Diziam boatos que o cupido distraído foi condenado a mais de 100 anos como estátua de chafariz.

Com os nervos à flor da pele, decidiu esperar até as 2 h. Quem sabe o Destino (aquele maldito pregador de peças) não se distraiu dessa vez? Mas, para seu desespero, depois de vinte minutos, lá estava o casal certo. “Estou mesmo perdido”, pensou, aflito, arrancando alguns fios louros da cabeça. Como quem vai pra forca, cumpriu sua última tarefa de cupido e foi voando devagar para o céu, onde no mínimo, perderia suas asas prateadas.

Esperou novamente na fila, cabisbaixo. Havia 20 cupidos à sua frente. Pensou se algum deles também tinha cometido um erro como o dele... "Claro que não... Afinal, EU sou o verdadeiro cupido burro ". Sua vez chegou 'voando' e logo estava diante da mulher gorda com olhar de deboche.
-Eu não disse?? Olhe só o que você fez!
Enquanto ela remexia algo debaixo da mesa, Pedro começou a balbuciar desculpas.
-Você tinha raz...
"SURPRESA!"
Num instante, apareceu um bolo enorme e vários anjos saíram de todos os cantos.
-Parabéns pra você... -Cantaram todos
Ele não entendeu nada, mas ficou feliz assim mesmo.
-Obrigada gente... Eu nem lembrava que fazia aniversário...
-Sopre as velinhas!!
Ele soprou e, do nada surgiu um presente enorme, acompanhado de um pequeno bilhete:

"Peço desculpas pela pegadinha, querido amigo.
Feliz aniversário!
Ass: Destino"

Misteriosamente, a gigantesca caixa estava vazia, não havia presente nenhum...
"Ironia do Destino", pensou rindo.