O Cravo e a Rosa

27 setembro, 2009
Debaixo da sacada duma casa rica qualquer, havia um jardim de inverno onde várias flores conviviam juntas e encantavam os transeuntes. Entre elas, uma rosa grená e um cravo amarelo, amantes desde a última primavera. O namoro dava gosto de se ver, ambos viviam um para o outro, exalando perfumes apaixonados e trocando juras de amor eterno.

Todas as flores eram simpáticas ao casal, exceto um par de orquídeas que vivia no parapeito da janela. Era antiga a rincha entre orquídeas e rosas, ambas almejando o título de rainha das flores. Mas, como estava apaixonada e feliz, a rosa esbanjava esplendor e beleza, deixando a rival em papel coadjuvante e cheia de inveja.

Pois que a inveja transformou a rincha em ódio e o ódio em intriga. Logo espalhou-se a fofoca de que um certo cravo amarelo andava arrastando as pétalas para a maria-sem-vergonha, que por sua vez já não tinha uma fama muito respeitável. A rosa, geniosa como ela só, ficou furiosa ao ouvir tais rumores e logo tratou de se vingar: Deixou-se beijar pelo beija-flor garanhão que sempre a galanteava, provocando a ira do amante traído.

Foi então que começou a discussão. Muitas ofensas foram trocadas entre o casal, traição era uma acusação grave. As margaridas bem que tentaram apartar a briga, mas nem foram ouvidas em meio a tanta mágoa e decepção. Ambos estavam com o coração partido e seriam capazes de tudo em nome da raiva e do ciúme.

A rosa foi a primeira a apelar para a violência, usando seus espinhos para ferir quem a tinha ferido. O cravo, meio desnorteado pelo golpe, deu-lhe uma sacudidela, fazendo cair várias pétalas. A briga só parou quando ele já sangrava. A rosa, meio despedaçada, sentiu o remorso imediatamente ao ver o estado em que se encontrava seu amor. "O que eu fiz?", desesperou-se. Pediu desculpas e prometeu cuidar dos ferimentos, mas já era tarde. O cravo, moribundo, desmaiou para a morte e única coisa que ela pode fazer foi chorar, murchando logo depois, para a alegria de quem tinha causado aquilo tudo.

E, finalmente, as orquídeas conquistaram a majestade. A rosa, murcha, foi arrancada junto a seu amor, como Romeu e Julieta. As outras flores, muito tristes prometeram nunca esquecer daquele lindo amor e para isso compuseram uma linda cantiga, que seria por muitos anos cantada em centenas de jardins pelo mundo...

"O cravo brigou com a rosa,
Debaixo de uma sacada,
O cravo saiu ferido,
E a rosa despedaçada.

O cravo ficou doente,
A rosa foi visitar,
O cravo teve um desmaio,
E a rosa pô-se a chorar. "

// Já contei pra vocês que trabalho numa floricultura? Pois que nesta semana o que não faltam lá são rosas e cravos. Amo flores, elas me inspiram literalmente! Espero que tenham gostado...

Desencanto

23 setembro, 2009


“E viveram felizes para sempre...”

Cinderela repetia a frase com deboche enquanto tentava abotoar o apertado corpete cravejado de diamantes. Depois de dez anos de “felizes para sempre”, já estava difícil manter o corpinho de modelagem 38, que infelizmente era a de todos os seus vestidos de festa. O baile daquela noite era o décimo daquele mês, seus pezinhos calejados pelo cristal do sapato já não aguentavam mais dançar a maldita música romântica de sempre, ela não via a hora de inventarem um jeito mais prático de príncipes encontrarem princesas. Estava muito mal-humorada naquele dia, mas deveria estar linda e sorridente para ser exibida ao lado do seu marido na festa. Mulheres serviam, dentre outras poucas coisas, para isso.

Depois de muito sufoco para vestir as sete anáguas e ajeitar o penteado (sem chapinha), a famosa Cinderela estava pronta. Seu marido já a esperava na carruagem, impaciente. Disse meia dúzia de murmúrios pela demora e chamou o chofer para guiá-los através da floresta escura. Eles não costumavam conversar muito e portanto a viagem foi silenciosa. Até demais! Ela bem que gostaria de lhe contar sobre sua rotina, seus filhos e sobre os livros que lia, mas não era comum que maridos desses esse tipo de abertura às esposas.

Chegando ao palácio onde aconteceria o evento, ambos se encaminharam para entrada do salão. Ele a levando pela cintura como mandava a etiqueta da época, ela sorridente e cândida, como mandava o teatrinho que sempre representava nessas ocasiões. A recepção foi calorosa e a noite prometia ser longa. Havia muitos quitutes reais, a música era boa e belíssimos vestidos farfalhavam naquele recinto, tudo muito requintado. Mas, para aquela princesa enfadada, era só mais uma festa estranha com gente esquisita.

Em certo momento, foi deixada a sós com outras mulheres que não conhecia. O assunto entre elas era a escolha daquela noite. O noivo tinha péssima fama de ser mulherengo, fanfarrão e carrancudo, mas mesmo assim era considerado o príncipe encantado da vez, todas as solteiras queriam ser escolhidas. Passou pela sua cabeça a noite em que fora escolhida por causa do sapato de cristal. Lembrou-se da ilusão que também tinha a respeito de “príncipes encantados”. Só depois veio a saber que eles não existiam, mas apenas faziam parte das fantasias de moça virgem. Todo o romantismo e perfeição não passavam de meros sonhos bobos, dissolvidos ao primeiro contato com a realidade: Homens eram todos iguais.

Pensou em dizer algo às jovens iludidas, tentar abrir seus olhos, mas, refletindo mais um pouco, preferiu não apagar o brilho daqueles olhares: Elas também tinham o direito de esperar seu príncipe encantado e viver a emoção e se casar com ele. Mesmo que o encantamento terminasse à meia-noite.

Pais Separados

14 setembro, 2009

"Que não seja imortal posto que é chama..."


Eu sempre achei bem normal essa coisa de pais separados, nunca tive preconceitos nem medos a respeito disso. Mas, tudo é diferente quando a família em questão é de uma amiga, colega, qualquer uma que não a sua. Não que agora eu esteja com medo, mas estou vendo as coisas por um ângulo diferente: O de quem sente na pele. A separação, afinal, tem lá seu peso sentimental. Sorte que eu já esperava por isso e não estou sofrendo agora por ilusões quebradas. Há tempos que a harmonia e o amor estão em falta. E eu já sou madura o bastante para aceitar que é possível errar na escolha de um cônjuge e que não existe obrigação de sustentar uma relação quando não há felicidade. Essas coisas eu fui aprendendo com a vida, seja ouvindo brigas por trás da porta, seja sentindo a falta de paz no meu lar, ou mesmo com meus próprios namoros. A vida e os amores, afinal são assim.

"Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto..."

Que Deus me ajude a não ter medo.

Cúmplices

10 setembro, 2009
Quebrando a monotonia da paisagem do parque, que sempre ficava vazio aos domingos, duas moças caminhavam tranquilamente entre os canteiros. Eram melhores amigas desde a infância e trocavam confidências a respeito de tudo que se passava em suas vidas. O assunto do dia era o rapaz com quem uma delas pensava em namorar firme. Nada parecia haver de mais importante naquele momento além do papo agradável e cheio de confissões. Tanto que passaram despercebidos os movimentos de uma sombra por tras de uma touceira.

Como que vindo do céu, um homem avançou rápidamente e agarrou a garota mais próxima, tapando sua boca e apontando uma arma para sua cabeça. "Quero dinheiro", dizia ele. Parecia drogado. A acompanhante da vítima soltou um gritinho agudo e, para surpresa do bandido, atirou o que tinha nas mãos: seu celular, que ainda era daqueles antigos e pesadões. O aparelho bateu na testa do marginal, fazendo-o se desequilibrar, libertando a sua refém, chorosa e paralisada de medo. A arma, por sua vez, foi parar na grama e, logo depois, nas mãos da amiga-heroína, que, noutro reflexo impensado, deu dois tiros sem mira. Um deles acertou o agressor.

As duas amigas se abraçaram e choraram pelo susto e adrenalina. Apesar do barulho, ninguém mais apareceu na cena, continuavam a sós com o suposto morto naquele parque deserto. Ainda sem recobrar o fôlego depois do que tinham acabado de passar, surgiu uma dúvida no ar: O que vai acontecer quando descobrirem o 'cadáver'? Sabiam que existia legítima defesa, mas, naquele momento de angústia, só conseguiram se imaginar, com pavor, dentro de uma cela lotada, condenadas por assassinato.

O rio que passava por alí perto foi a primeira e única opção a ser pensada. O corpo pesava bastante, mas, sem muita dificuldade, foi lançado na água marrom, afundando rápidamente.
A arma, já limpa pela barra de uma saia, também foi jogada.

Como nos tempos de infância, quando aprontavam travessuras secretas, as duas seguiram, cautelosas, para alguma lanchonete mais distânte possivel dali. O sentimento era de alívio e cumplicididade. Desde então, houve entre elas algo maior, que as uniu por muitos anos além da amizade: Um segredo.