Vida de Cupido

14 outubro, 2009


"Próximo!"
Gritou o auto-falante. Pedro entrou pela pequena porta em forma de coração, que logo se fechou atrás de si. Sentada atrás de uma pilha de papéis estava uma mulher corpulenta com enormes óculos pendurados no nariz puntudo.
-Más notícias pra você seu fanfarrão!-disse ela, com os olhos no teto.
-Quero novidades, tá?- Respondeu o cupido, com seu cigarro no canto da boca.
-Pra começar, onde está seu uniforme?
-Você chama aquela fralda nojenta de uniforme? Eu não sou bebê!
Ela deu de ombros, passando as mãos sobre a pilha de papéis
-Você tem 3187 advertências... Se eu fosse você cuidaria melhor de seu cargo...
-Dispenso seus conselhos! Vamos ao que interessa. Passa logo a parafernália.
-Estou falando sério, seu bunda-mole! Voce sabe muito bem o que acontece com Anjos desobedientes, não é?
Ele engoliu seco, passando as mãos pelos cachos
-Talvez o Limbo não seja tão mal...
-Não se esqueça de que Ele ouve tudo...
-Deixa de lenga-lenga, mulher! Tem mais 9 000 anjos na fila, sabia?
-Sei... Bem, aqui está seu roteiro - disse, entregando-lhe um pequeno papel cor-de-rosa.
-Onde estão as flechas?
-Aqui... Mas, olha. Vê se não desperdiça. Sua pontaria é uma das piores...
-Eu sou um anjo, não um arqueiro.
Encaminhou-se para um pequeno compartimento vermelho, onde foi fechado por uma porta de vidro. Aproveitou para fazer um gesto obceno enquanto a mulher apertava o botão escrito UTT (última tecnologia em teletransporte).

O papel dizia: "Encontro acidental na Av. Coelho Gordo às 2:00h em ponto". E lá estava ele, pitando seu cigarrinho numa nuvem fofa, com meia hora de adiantamento para cobrir qualquer imprevisto. "Como se o 'excepcional' Destino deixasse escapar alguma coisa", pensou ele, com ironia, mal-humor e resquícios de inveja. Enquanto esperava, pegou uma das flechas que carregava e ficou observado seu brilho cor-de-rosa. "E pensar que até música já fizeram contra nós... Esses humanos folgados que nem são capazes de arranjar um par romântico sozinhos... Onde Ele estava com a cabeça quando inventou tais criaturas?? Se fosse eu..." Teria completado seu devaneio, não fosse um barulho seco de uma trombada. "São eles!"

Parecendo não ter muita prática, posicionou no arco a flecha que já segurava, mirou e "blim!". Acertou em cheio a moça, que logo se apaixonou perdidamente pelo rapaz que catava seus livros pelo asfalto. O Próximo passo, foi fazer o mesmo com o garoto, que deu um pouco mais de trabalho, sendo necessárias três flechas. “Tudo bem... Ao menos só desperdicei duas". Sorriu de contentamento e olhou o relógio para marcar seu novo recorde. Mas, algo estava errado... Ainda eram 1:40h!

"Essa não..." Sentiu uma pontada no coraçãozinho de anjo."Flechei o casal errado? Só pode ser brincadeira...". Começou a chorar e roer unhas. Sabia que errar de casal era um crime gravíssimo, previsto na constituição do céu. Já ouvira muitas histórias de casais que não eram pra se apaixonar e terminaram em tragédia. Romeu e Julieta era um dos casos mais famosos... Diziam boatos que o cupido distraído foi condenado a mais de 100 anos como estátua de chafariz.

Com os nervos à flor da pele, decidiu esperar até as 2 h. Quem sabe o Destino (aquele maldito pregador de peças) não se distraiu dessa vez? Mas, para seu desespero, depois de vinte minutos, lá estava o casal certo. “Estou mesmo perdido”, pensou, aflito, arrancando alguns fios louros da cabeça. Como quem vai pra forca, cumpriu sua última tarefa de cupido e foi voando devagar para o céu, onde no mínimo, perderia suas asas prateadas.

Esperou novamente na fila, cabisbaixo. Havia 20 cupidos à sua frente. Pensou se algum deles também tinha cometido um erro como o dele... "Claro que não... Afinal, EU sou o verdadeiro cupido burro ". Sua vez chegou 'voando' e logo estava diante da mulher gorda com olhar de deboche.
-Eu não disse?? Olhe só o que você fez!
Enquanto ela remexia algo debaixo da mesa, Pedro começou a balbuciar desculpas.
-Você tinha raz...
"SURPRESA!"
Num instante, apareceu um bolo enorme e vários anjos saíram de todos os cantos.
-Parabéns pra você... -Cantaram todos
Ele não entendeu nada, mas ficou feliz assim mesmo.
-Obrigada gente... Eu nem lembrava que fazia aniversário...
-Sopre as velinhas!!
Ele soprou e, do nada surgiu um presente enorme, acompanhado de um pequeno bilhete:

"Peço desculpas pela pegadinha, querido amigo.
Feliz aniversário!
Ass: Destino"

Misteriosamente, a gigantesca caixa estava vazia, não havia presente nenhum...
"Ironia do Destino", pensou rindo.