Desencanto

23 setembro, 2009


“E viveram felizes para sempre...”

Cinderela repetia a frase com deboche enquanto tentava abotoar o apertado corpete cravejado de diamantes. Depois de dez anos de “felizes para sempre”, já estava difícil manter o corpinho de modelagem 38, que infelizmente era a de todos os seus vestidos de festa. O baile daquela noite era o décimo daquele mês, seus pezinhos calejados pelo cristal do sapato já não aguentavam mais dançar a maldita música romântica de sempre, ela não via a hora de inventarem um jeito mais prático de príncipes encontrarem princesas. Estava muito mal-humorada naquele dia, mas deveria estar linda e sorridente para ser exibida ao lado do seu marido na festa. Mulheres serviam, dentre outras poucas coisas, para isso.

Depois de muito sufoco para vestir as sete anáguas e ajeitar o penteado (sem chapinha), a famosa Cinderela estava pronta. Seu marido já a esperava na carruagem, impaciente. Disse meia dúzia de murmúrios pela demora e chamou o chofer para guiá-los através da floresta escura. Eles não costumavam conversar muito e portanto a viagem foi silenciosa. Até demais! Ela bem que gostaria de lhe contar sobre sua rotina, seus filhos e sobre os livros que lia, mas não era comum que maridos desses esse tipo de abertura às esposas.

Chegando ao palácio onde aconteceria o evento, ambos se encaminharam para entrada do salão. Ele a levando pela cintura como mandava a etiqueta da época, ela sorridente e cândida, como mandava o teatrinho que sempre representava nessas ocasiões. A recepção foi calorosa e a noite prometia ser longa. Havia muitos quitutes reais, a música era boa e belíssimos vestidos farfalhavam naquele recinto, tudo muito requintado. Mas, para aquela princesa enfadada, era só mais uma festa estranha com gente esquisita.

Em certo momento, foi deixada a sós com outras mulheres que não conhecia. O assunto entre elas era a escolha daquela noite. O noivo tinha péssima fama de ser mulherengo, fanfarrão e carrancudo, mas mesmo assim era considerado o príncipe encantado da vez, todas as solteiras queriam ser escolhidas. Passou pela sua cabeça a noite em que fora escolhida por causa do sapato de cristal. Lembrou-se da ilusão que também tinha a respeito de “príncipes encantados”. Só depois veio a saber que eles não existiam, mas apenas faziam parte das fantasias de moça virgem. Todo o romantismo e perfeição não passavam de meros sonhos bobos, dissolvidos ao primeiro contato com a realidade: Homens eram todos iguais.

Pensou em dizer algo às jovens iludidas, tentar abrir seus olhos, mas, refletindo mais um pouco, preferiu não apagar o brilho daqueles olhares: Elas também tinham o direito de esperar seu príncipe encantado e viver a emoção e se casar com ele. Mesmo que o encantamento terminasse à meia-noite.